Combinar criatividade e números pode ser uma mistura perigosa
Nem sempre o adjetivo criativo significa apontar uma qualidade positiva. No caso da atividade contábil, o termo pode ser apenas uma forma de dar outro nome para manobra
A contabilidade criativa vem ganhando as páginas de notícias brasileiras. A divulgação das contas do governo federal, no final do ano passado, as manipulações feitas pela Petrobras para minimizar os efeitos da desvalorização do real sobre as suas dívidas e o mais recente escândalo envolvendo o possível encerramento de 500 mil contas de poupança da Caixa Econômica Federal devido a supostos problemas despertaram amplo debate sobre o assunto. Estariam o governo e as empresas realmente lançando mão de maquiagem nos balanços organizacionais para exibir resultados positivos, mas irreais?
Antes de fazer esse julgamento, é preciso entender melhor o significado do termo e aceitar sua subjetividade. Para isso, é preponderante voltar ao início da década de 2000, quando eclodiram escândalos envolvendo dados de importantes corporações e o adjetivo “criativo” foi acoplado a uma das profissões em que a inventividade não tem espaço - ou não tinha.
Apontada como a principal causadora do colapso do mercado de ações nos Estados Unidos, em 2002, a contabilidade criativa (creative accounting ou earning management, em inglês) resultou em uma grave crise de confiança nos mercados de capitais e na derrocada de importantes corporações como a Xerox, WorldCom, Tyco International e Enron, entre outras.
As duas palavras são usadas para denominar basicamente a manipulação ou interpretação de dados financeiros de acordo com os interesses da empresa ou do organismo governamental. Para isso, contadores lançam mão de brechas nas normas ou da possibilidade de sempre buscar os melhores valores para noticiar e maquiar os dados na tentativa de melhorar a imagem empresarial. Porém, fica a pergunta: qual o limite entre esta “maquiagem” e a fraude contábil?
Segundo o presidente do Conselho Regional de Contabilidade do Rio Grande do Sul, Antônio Palácios, a contabilidade criativa é uma invenção de quem desconhece a prática. Indignado com a caracterização das fraudes como um processo da área contábil, Palácios adverte que o termo é usado para denominar falcatruas governamentais, já que o poder público busca apresentar números favoráveis que não conseguiu na prática.
O contador Cláudio Marcelo Cordeiro, professor e coordenador do curso de Ciências Contábeis nas Faculdades Integradas Santa Cruz/Inove do Paraná, que pesquisa o assunto, avisa que, para a elaboração da informação contábil, existem normas a seguir que não podem deixar de incluir elementos de subjetividade e cuja aplicação requer, em muitos casos, a realização de estimativas por parte da empresa. No entanto, é enfático ao defender que não há limite entre a maquiagem dos dados contábeis e a fraude. “A partir do momento que as informações são alteradas, existe a clara intenção de maquiar uma demonstração financeira, e isso é fraude”, adverte. Já o contador Ivan Ricardo Guevara Grateron, mestre em Contabilidade e Controladoria pela Universidade de São Paulo (USP), acredita que nem toda manipulação dos dados contábeis é necessariamente uma fraude.
Segundo Grateron, alguns profissionais defendem a contabilidade criativa desde a perspectiva do “fair value”, ou seja, o melhor valor possível. De fato, as Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS) indicam a possibilidade de optar pela alternativa que melhor representa a realidade contábil da empresa. “Mesmo que esse ‘melhor’ esteja limitado pelos princípios contábeis, dá ao profissional um leque amplo de descrições. Dessa forma, tecnicamente, em alguns casos, a criatividade contábil não pode ser chamada de fraude”, pontua.
Regras estabelecem punição a profissionais
O Conselho Federal de Contabilidade (CFC) declara, no conjunto de normas que regem a atividade contábil, que se trata de “uma ciência social, cujo objeto é o patrimônio das entidades”. Na Norma Brasileira de Contabilidade – Técnica (NBC-T) está estabelecido que “as informações geradas pela contabilidade devem propiciar aos seus usuários base segura às suas decisões pela compreensão do estado em que se encontra a entidade ou a empresa, seu desempenho, sua evolução, riscos e oportunidades que oferecem”.
A regra deixa claro que o compromisso maior do contador é com a sociedade, tendo de defender interesses supra-empresariais. Presidente da entidade representativa dos contadores gaúchos, o Conselho Regional de Contabilidade (CRCRS), Antônio Palácios lembra que os responsáveis pela demonstração contábil são o administrador e o contador e, a partir do momento em que esses profissionais assinam o balanço contábil, estão se responsabilizando pela veracidade dos dados.
“É claro que no caso de uma Caixa Econômica Federal é difícil que o contador vá contra a ordem de assinar o balanço”, admite Palácios. Porém, os profissionais têm o compromisso de zelar pela sua prática ou sofrerão as consequências das fraudes.
O supervisor de Apoio Técnico a Câmaras do CRCRS, José Clarel Calleari, alerta para os perigos da prática. “Se o profissional assinar um balanço falsificado, a pena aplicada pelo órgão é a de suspensão do exercício profissional cumulativamente com uma pena ética (advertência reservada, censura reservada ou censura pública). Quanto à prisão, isso fica na esfera da justiça, podendo as partes lesadas apresentarem denúncia”, avisa.
Auditores devem ser os olhos dos investidores
Além de suscitar a discussão sobre a responsabilidade do contador, o tema da contabilidade criativa repercute nas atribuições dos auditores. Capaz de representar o interesse de terceiros, muitos deles leigos em matéria contábil e financeira, a auditoria pode trazer uma visão ainda mais independente do que a do contador para dentro dos balanços empresariais.
Para Cláudio Marcelo Cordeiro, contador, a auditoria é a medida primordial contra a generalização das práticas de manipulação contábil. Logo, “os auditores devem adotar uma postura contundente ao sinal da existência de contabilidade criativa, não somente ressalvando pareceres”.
As companhias de auditoria têm tanta responsabilidade que, durante a eclosão dos escândalos de contabilidade criativa nos Estados Unidos, uma das grandes empresas a sofrerem punições mais severas foi a Arthur Andersen. Pioneira no ramo, a firma era considerada a mais importante do mundo e foi condenada por obstrução da Justiça por ter destruído documentos e arquivos eletrônicos ligados ao caso da quebra da gigante no setor de energia Enron. A companhia não resistiu ao escândalo e foi extinta em 2002.
“As auditorias foram muito afetadas, pois eram encarregadas de cuidar das informações que recebem os stakeholders (investidores) ou outras pessoas e empresas com interesse nas demonstrações da empresa auditada”, analisa Ivan Ricardo Guevara Grateron, autor do estudo Contabilidade Criativa e Responsabilidade dos Auditores.
Maquiagem tende a descaracterizar a imagem
A contabilidade criativa põe em xeque valores éticos e legais da profissão ao colocar a companhia em uma situação desejada para o mercado acionário, enquanto os números reais do balanço da entidade não condizem com os expostos nas demonstrações contábeis ou ao direcionar informações privilegiadas a um grupo estabelecido de investidores. As consequências podem ir de perdas financeiras até punições severas às corporações e seus colaboradores, além de criar uma atmosfera de dúvida no mercado.
Conforme o contador e pesquisador Cláudio Marcelo Cordeiro, experiências internacionais comprovam que a contabilidade criativa é amplamente utilizada, principalmente em mercados cujo desenvolvimento da bolsa de valores é acentuado. “Por isso, gigantes empresariais causaram perdas bilionárias aos seus investidores.”
Cético, o contador e pesquisador Ivan Ricardo Guevara Grateron diz não acreditar que as empresas cujas fraudes foram descobertas no início dos anos 2000 foram pioneiras em valer-se da criatividade e nem foram as últimas. Para ele, a criatividade contábil é inerente à prática empresarial.
O que preocupa os especialistas é que a manipulação pode ter reflexos profundos e perigosos nas finanças empresariais e em toda a economia nacional, como ocorreu nos Estados Unidos. Assim, a melhor dica que dão àqueles que recorrem a algum tipo de manobra em suas contas é ficar atento para não perder completamente a identidade.